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quinta-feira, 25 de junho de 2015

Colírio



(tréplica ao poema de Rita Apoena, resposta ao poema “Apelo”, de Dalton Trevisan)

Senhora, sua ausência não se faz sentir apenas nas coisas que estão desorganizadas em nossa casa. Na verdade, nosso lar é o retrato mais fiel de como está meu coração desde que você partiu.

Os meus sentimentos estão em frangalhos, já não sei o que pensar, por onde andar, em que depositar minha esperança. Pior é imaginar que a sua partida foi porque não soube ouvir e tampouco valorizar quem esteve ao meu lado por tanto tempo.

Antes de perder você, Senhora, eu não era capaz nem de escutar a mim mesmo, que dirá estar atento às suas necessidades. Embora tenha demorado muito para me dar conta da sua falta, a saudade aflorou em mim sentimentos tão intensos como nunca antes experimentara em minha vida.

Esses 30 dias me ensinaram mais do que 30 anos. Fique certa de que o maior problema da nossa separação não é a bagunça que ficou a nossa casa sem a Senhora. Se esta fosse a questão, já teria contratado uma empregada. Quer dizer, uma diarista, porque os encargos trabalhistas de uma doméstica ficaram muito caros...

Falei do leite coalhado, da pilha de jornais, do canário mudo, das violetas murchas, da camisa sem botão, da meia furada e do saca-rolhas porque essas pequenas coisas, Senhora, teimavam em revelar a grandeza do que eu havia perdido. Para que bancar o forte, se fico bem mais próximo da felicidade ao ser um “babão apaixonado”? Quando disse que aprendi muito neste um mês de separação eu não estava mentindo: até aprendi a ser romântico.

Volta para casa, Senhora. Prometo não brigar mais pelo sal no tomate, regar as violetas, recolher o jornal debaixo da escada e fazer um curso de corte e costura para fazer pequenos reparos em minhas roupas.

Um jantar à luz de velas regado a um vinho do Porto estará à sua espera. Afinal de contas, encontrei o saca-rolhas e quero comemorar esta descoberta com a redescoberta do amor que um dia a Senhora já teve por mim.


quinta-feira, 18 de junho de 2015

Framboesas


(resposta ao poema “Canteiros”, de Cecília Meireles)

Cara Cecília, nem adianta você colocar o Fagner para cantar esses versos. Eles não significam nada para mim. Na verdade, servem de pretexto para você atacar caixas e mais caixas de framboesas. Aliás, na presença dessas frutas era como se o mundo todo deixasse de existir, inclusive eu.


E mais: como você bem sabe, eu sou fã do Caetano Veloso e todos têm conhecimento da rixa antiga entre o baiano e o cearense. Parece até que você fez isso por birra...

 “Como é produção?” Ah, recebo a informação de que sua família entrou com processo judicial contra o Fagner por que ele não pediu autorização. Bom, se é assim, a história muda...


Em todo o caso, fica o conselho. O amor é o campo da alma. Não cultive nele apenas um tipo de semente. O canteiro do meu coração é bem volátil e está mais sujeito às intempéries da vida do que você possa imaginar.


Ao contrário dos desenhos que são feitos nas escolas, o sol não tem boca e tampouco fica arreganhando os dentes para nós. Logo, para dar um sorriso, não é preciso que os seus raios lhe cumprimentem com simpatia e cordialidade. O fator determinante para que o ocaso seja melhor que a aurora é você mesma, ninguém mais pode tomar esta decisão.


Seus amigos estão certos: mesmo tendo nascido no início do século XX, você ainda é muito moça para ter tanta tristeza. Receie a morte, mas abomine a ideia de não ver a vida.


Cissa, confesso-lhe que este também sempre foi o meu medo. Por esse motivo, resolvi sair da sua vida. Fiz isso não porque lhe desprezava. Na verdade, queria estar no aconchego de outros braços, provar outros lábios, perder-me em outras curvas.


Depois de correr por tantos campos repletos de ervas daninhas, meu coração resolveu lançar suas sementes na terra fértil do seu amor. Esse tempo todo eu também estive correndo entre os canteiros para esconder minha tristeza.


Estou louco de saudade desses dedos longos fazendo cafuné, acariciando meu rosto – quase sempre com a barba por fazer – e tentando empurrar o meu corpo contra o seu. Chega de utilizá-los para inventar versos tristes...


Se você realmente me prefere às framboesas, estou disposto a dar uma segunda chance ao nosso amor. Você não precisa mais fechar os olhos de saudade ao pensar em mim.

Quando isso acontecer, quero estar bem próximo de ti. Quero ter muita coisa com você, inclusive a felicidade.





sexta-feira, 12 de junho de 2015

O medo do diferente



Homofobia. Xenofobia. Cristofobia. Estas palavras estiveram presentes nos noticiários e comentários da Internet desta semana. Da faixa “100% Jesus” de Neymar comemorando sábado (5) o título da Liga dos Campeões da Europa à representação, no dia seguinte, do nazareno crucificado por uma atriz transexual na Parada Gay em São Paulo, o assunto religião esteve no centro dos debates, rendendo discursos inflamados da bancada cristã e pró-LGBT no Congresso Nacional.
Estes dizem que são vítimas de homofobia e que o gesto na Paulista nada mais foi do que um retrato da situação de preconceito (e até de violência) vivida diariamente por quem sente atração por pessoas do mesmo sexo. Aqueles, por sua vez, alegam desrespeito ao símbolo máximo da fé cristã, ocorrido em um evento profano, fora de qualquer contexto sagrado e que as críticas ao craque do futebol brasileiro atestam, segundo pastores, padres e bispos, uma “cristofobia”, uma aversão aos valores que norteiam a sociedade ocidental há séculos.

Discutir se a transexual afrontou (ou não) os cristãos ou se Neymar, perante centenas de milhões de pessoas que acompanhavam à final da maior competição continental de clubes do mundo, foi desrespeitoso com aqueles que não professam da mesma fé, nem é tão relevante. O debate que vale a pena fazer a partir destes dois casos é sobre a intolerância religiosa e seus desdobramentos.

Esse ba-fa-fá (que, em alguns casos, mais parece mi-mi-mi) só acontece porque muitas pessoas julgam outras a partir de suas convicções, julgando-as ser melhores do que aquelas de quem pensa ser diferente. São evangélicos e católicos que não conhecem 1% das agruras sofridas pelos homossexuais falando de um grupo cuja maioria não professa dos seus valores ao passo que este tenta reagir as provocações sofridas com mais provocação e acabam por ofender um número muito maior de pessoas do que aquelas que as agridem.

Em se tratando de convívio social, ninguém chega a lugar nenhum agindo desta forma. Foi o tempo em que você se sentia parte de um grupo, assimilava seus valores e isso lhe bastava para o resto da vida. No mundo de hoje, o tempo todo você se defronta com pessoas que agem e pensam diferente. Não saber dialogar com esse mundo tão plural é a chave que poderá levar muita gente ao manicômio ou ao presídio.

É aí que entra outro assunto mencionado no início do texto: a xenofobia. Essa aversão a estrangeiros, sobretudo africanos e haitianos (muito presente em Cascavel, aliás), demonstra uma insensibilidade e uma incoerência com nossa história tão repleta de miscigenação.

Quem assistiu ao CQC, da TV Band, nesta segunda-feira ficou horrorizado ao ver ao apego à ignorância por um gerente de vendas travestido de militante de ultradireita (apesar de não termos sido devastados por uma Guerra Mundial, o Brasil de hoje parece caminhar para a Alemanha da década de 1930, falta só um Hitler para chefiar os “reaça”; se a vaga for aberta, Ronaldo Caiado, Jair Bolsonaro e Danilo Gentili saem em vantagem nessa corrida) que humilhou um frentista haitiano que trabalha honestamente em um posto de combustíveis em Canoas/RS. Confrontado pelo repórter Juliano Dip, ele não apenas reiterou sua xenofobia como alegou o Foro de São Paulo (grupo de trabalho com lideranças latino-americanas de esquerda) e insistiu que o governo PT recruta haitianos para compor um exército bolivariano e instaurar o comunismo no Brasil.

Como pode ser visto no vídeo abaixo, Dip disse que o Haiti não integra no Foro de São Paulo e que o país foi vítima do maior desastre natural da história recente do nosso continente. Mas isso não foi suficiente para o agressor pedir desculpa (objetivo principal do quadro “haters”) pelo seu ato; pelo contrário, insinuou que o repórter estava mal-informado ou mal-intencionado e quis “conduzir” a entrevista à sua maneira e, ao ver que o jornalista não caiu em seu jogo, tratou de ofendê-lo enquanto se esquivava da entrevista.

Pior é ver que o exemplo de Daniel Barbosa tem aos montes por aí. Não raro, os haitianos são “mandados para a África” por muita gente. Além de não aprenderem boas maneiras, faltaram às aulas de Geografia, pois o Haiti fica no Caribe. Esse nacionalismo recalcado não pode ter lugar no Brasil. Nosso país deve ser justo e próspero tanto para quem nasceu quanto para quem decidiu viver aqui.

Essa “onda conservadora”, que ganhou força com a vitória de Dilma nas últimas eleições e a decepção de muitos setores com a crise e os escândalos de corrupção que envolvem políticos e empresários ligados ao PT, não pode argumentar valores (a tal “moral e bons costumes”) para quem não acredita ou não os coloca como prioridade em sua vida. Quem quer segui-los, também tem direito de não ser constrangido. Sem diálogo, estas situações sempre serão conflitantes.

Nos dias atuais, nunca foi tão verdadeiro o ditado “Narciso odeia tudo que não é espelho”. Para quem pensa assim, fica o recado: se o diferente lhe provoca medo, lembre-se que,  para o outro, você também é diferente. Está a fim de ser medido pela própria régua?